Rio de vozes
Longa de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret retrata a força e a resiliência das comunidades ribeirinhas do São Francisco
Por Gabriela - Última Atualização 7 de março de 2022
Ainda criança, a cearense Andrea Santana descobriu o amor pelo cinema. Na época da ditadura militar, um grupo de amigos da família criou um cineclube no Cariri, local onde moravam. “Eles faziam projeções na casa de um e de outro. Era uma forma de resistir à uniformidade do pensamento. Aquelas projeções me marcaram muito e, mais tarde, eu virei uma ‘cinéfila’, dentro das limitações impostas pela ditadura”, recorda.
Andrea se formou em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e esteve na área por uma década. Durante os anos no mercado, chegou a trabalhar com nomes como : Fausto Nilo, Delberg Ponce de Leon, Pedro Boaventura e Falcão. Sempre muito atenta às causas sociais, conta que projetar casas e prédios para os moradores dos bairros chiques da cidade não era o caminho que a convinha. Dessa forma, sempre esteve mais ligada a temas relacionados ao urbanismo e a como a arquitetura pode contribuir para garantir qualidade de vida aos menos favorecidos.
O encontro com Jean-Pierre Duret
O francês Jean-Pierre é engenheiro de som em filmes de ficção há, aproximadamente, quarenta anos. O encontro entre Jean e Andrea aconteceu de forma natural, no set de filmagens de It’s All True, documentário sobre um filme inacabado que o cineasta americano Orson Welles produziu em Fortaleza nos anos de 1940. “A arquitetura e o urbanismo eram minha paixão e toda minha formação foi nessa área. Quando encontrei Jean-Pierre, por um acaso do destino, o cinema voltou a fazer parte da minha vida”, conta.
Casados há mais de vinte anos, passaram a realizar projetos juntos. “Jean-Pierre é filho de pequenos agricultores. Eu vivi minha infância e adolescência na região do Cariri. Para conhecer melhor a cultura um do outro ele me propôs de realizarmos juntos o nosso primeiro filme ‘Romances de Terra e Agua’ com os pequenos agricultores sem terra da região do Cariri. Eu sempre digo que foi um filme de amor de um para o outro no sentido de que a gente tentava também se encontrar fazendo um filme a dois”, revela Andrea. Lançado nos cinemas da França em 2002, foi sucesso de público e crítica, abrindo, assim, as portas para que continuassem a realizar projetos juntos.
Cultura nordestina
Desde muito nova, Andrea Santana esteve fortemente ligada aos temas nordestinos, principalmente, com o objetivo de mostrar a beleza interior e a força de vida das pessoas que vivem nessa região, tentando quebrar a ideia da pobreza como coisa negativa. “Através do cruzamento da minha forma de ver as coisas pelo filtro da minha cultura com a forma de ver de Jean-Pierre, eu me dei conta da riqueza que estava ali diante de mim e que ela estava, de certa forma, se perdendo, porque o sistema neoliberal em que vivemos visa um objetivo forte que é o de destruir tudo o que é frágil, bonito ou proveniente das culturas tradicionais e que nos constitui enquanto povo”.
Sendo assim, Andrea e Jean optaram por desenvolver uma forma de documentário sem entrevistas, sem voix off ou narração explicativa. “Nos apoiamos somente nos pensamentos e palavras das pessoas que filmamos e nas cenas de vida, mas também nos silêncios, nos sons e nas imagens que falam por si só. O que nos interessa é que as pessoas, ao assistirem ao filme, sintam emoções que lhes são próximas e essenciais, que elas não vejam o outro como um outro completamente diferente delas, mas que o outro faça ressoar nelas coisas de sua própria história”, pontua Santana.
Rio de Vozes
Lançado no cinema do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, no dia 17 de fevereiro, o longa, produzido pelo casal de cineastas traça um registro etnográfico do modo de vida, costumes e tradições das comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco, dando vez e voz às suas histórias de luta pela preservação ambiental e pela manutenção da marcante ancestralidade. “A ideia de fazer um filme nas margens do São Francisco vem primeiro do fato de que esse rio faz parte do meu imaginário de forma muito forte. Desde criança, aquela massa d’água no meio da região seca sempre me impressionou. E, durante minha vida, atravessei ou passei à beira do São Francisco inúmeras vezes. Depois que encontrei Jean-Pierre, em várias ocasiões beiramos o rio durante as filmagens de nossos filmes anteriores, e ele foi criando um afeto também”, assevera Andrea.
Sensível e, ao mesmo tempo, com uma força surpreendente, o longa traça um panorama sobre a cultura dos ribeirinhos e onde os problemas do rio são percebidos, sentidos e mostrados, através dos impactos que eles têm na vida dos personagens e no cotidiano deles. “A gente vem de uma história de injustiças e apagamentos, no que diz respeito às populações pobres e às minorias, que são humilhadas e pouco consideradas. A cultura e a história delas não são respeitadas e elas não são respeitadas como pessoas. Nós achamos que é importante que a realidade, o pensamento, as formas de resistência e de luta desses indivíduos sejam reconhecidos e considerados. Através de nossos filmes a gente procura provocar um encontro que quebre essa separação, que o público seja tocado e atente para o fato de que é responsabilidade de todos nós proteger, valorizar e considerar a cultura da nossa gente”, ressalta a cineasta.
Próximos projetos
Andrea diz que, por enquanto, a energia está concentrada na promoção do filme, já que é essencial que ele seja visto por um grande número de pessoas não só no Brasil como no mundo. “Na França já fizemos uma quantidade importante de projeções seguidas de um debate com o público, que é uma prática recorrente e que requer energia e disponibilidade grande de nossa parte. Enquanto estamos na promoção de um filme e até que ele possa seguir sua vida sozinho, a gente não se engaja em um novo projeto. Fazer um filme, para nós, requer muitos anos de trabalho, desde o momento da concepção até o acompanhamento dele nas salas de cinema”.