Democracia Digital
Especialista em Direito Eleitoral, Raquel Machado faz uma análise da próxima eleição
Por Pompeu - Em 29/07/2020 às 6:00 AM
Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Doutora em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) e Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), Raquel Cavalcanti Machado faz um passeio sobre a história da política e da democracia ao longo dos anos. Além disso, propõe uma análise sobre o atual cenário político brasileiro e cearense, traçando um panorama das próximas eleições. Confira a entrevista:
IN- Como explicar o conceito de “educação para a cidadania”?
RM- A finalidade da educação é possibilitar o desenvolvimento humano, desenvolvendo as potencialidades do ser e sensibilizando o indivíduo para a grandeza e a complexidade da vida. A educação pode envolver muitos aspectos da vida. O desenvolvimento pessoal, o desenvolvimento para o trabalho e o desenvolvimento para a participação em sociedade, para o empenho nas causas públicas. A Constituição Federal, por exemplo, no art. 205 consagra que a educação visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Nós temos descuidado desse segundo aspecto. Precisamos fazer com que os indivíduos se sintam integrantes da sociedade, com isso despertamos a responsabilidade social e a adesão cívica.
IN- A seu ver, a forma que as legislações educacionais brasileiras abordam o tema da educação para a cidadania é a ideal?
RM- Não. Há uma imensa falha tanto do ponto de vista teórico, quanto prático. É preciso engajar as pessoas nas atividades que interessam a todos, como, por exemplo, as questões políticas, urbanísticas, ambientais. Todos esses saberes a mais integram o conceito de educação para a cidadania. É preciso que as pessoas se sintam fazendo parte do meio que elas integram e de alguma forma se sintam responsáveis por ele, dando sua opinião e sua contribuição, ou, pelo menos, não agindo de forma destrutiva. O Brasil está extremamente carente dessa educação.
IN- Você acredita que a relação entre cidadania e educação é a mesma para todas as classes sociais?
RM- Não. Por vários motivos. As classes mais abastadas economicamente no Brasil são ainda relativamente egoístas e as pessoas de classe mais baixa carecem de meios e bens para desenvolverem todas as possibilidades dos mais diversos saberes. É preciso buscar mais equilíbrio em cada uma das classes, redistribuindo melhor a riqueza, desenvolvendo o sentido de solidariedade nas pessoas. A pobreza econômica de um indivíduo não é um problema só dele. É um problema de todos nós. A falta de acesso a saneamento e moradia, apenas para exemplificar, além de sujeitar aquele que mora num ambiente inadequado a uma condição indigna, pode fazer com que doenças se propaguem mais facilmente em toda a cidade, como podemos ver tão bem agora com a Covid. O mesmo ocorre em relação à educação de um modo geral e à cidadania. Quantos talentos não são perdidos, porque nem todas as crianças dispõem da mesma oportunidade? O brasileiro é muito talentoso e carrega o sonho de uma sociedade mais desenvolvida. Nós precisamos saber aproveitar positivamente esse potencial.
IN- A que se refere o termo democracia digital e qual seu impacto na vida da sociedade?
RM- A democracia digital é um novo espaço e uma nova ferramenta que viabiliza a participação do cidadão na vida política. É um conceito muito amplo que envolve desde a possibilidade de emissão de opinião em um ambiente público digital para discutir política, até a realização de fases da Administração, o controle dos políticos e da vida em sociedade pelo cidadão.
Ela impacta porque tem potencial para aumentar muito o poder do cidadão. Nós podemos exercer a participação não apenas quando votamos, mas de forma cotidiana. Para que esse novo ambiente, porém, represente verdadeiramente um poder é mais uma vez necessária educação para a cidadania. A pessoa precisa estar na internet ciente do seu poder e não apenas como consumidor de informação. Ao mesmo tempo, deve ter responsabilidade em suas falas, conhecer o risco da desinformação, desenvolver a capacidade de realizar diálogos com tolerância, saber que podemos ser inseridos em bolhas, e estarmos sujeitos à ação de algoritmos.
IN- Hoje, o digital está em todas as esferas. Na política, quais os maiores benefícios?
RM- O maior benefício é aproximar cidadão e representantes, através de uma fiscalização e um diálogo conscientes. Além disso, os próprios representantes encontram na internet um canal de comunicação mais plural. Se bem utilizada, a internet pode ser democrática, porque conglomerados midiáticos dão lugar ao talento pessoal. Mas esses benefícios só são possíveis se houver educação quanto aos riscos, como referi anteriormente.
IN- Você é especialista em Direito Eleitoral. Queria que traçasse um panorama de como analisa essas próximas eleições no Ceará.
RM- O Ceará tem muitas dificuldades econômicas e muita desigualdade social, o que é uma realidade história. Mas somos resistentes. Como disse patativa do Assaré, somos de “uma terra que o povo padece mas não esmorece e procura vencer”. Além disso, vejo na política cearense uma possibilidade de transformação desse cenário, ainda que paulatinamente. Temos bons políticos e o cearense tem se engajado cada vez mais na política. Além disso, temos um bom funcionamento institucional. A Justiça Eleitoral do Ceará, por exemplo, é integrada por julgadores competentes, atentos a eventuais violações no pleito. Claro que diante da pandemia e da pobreza, temos que ficar ainda mais atentos a possibilidade de corrupção eleitoral, com a compra e venda de voto. Mas não nos falta potencialidade. Eleições municipais são sempre difíceis porque são muitas campanhas (muitos candidatos) em circunscrições diversas que exigem fiscalização cuidadosa, mas tenho esperança de que saberemos superar essas dificuldades.
IN- Durante muito tempo, o conceito de liderança política esteve sempre ligado à figura masculina. Hoje, a mulher ganhou papel de destaque também na política. Fala um pouco sobre isso.
RM- Na verdade, estamos carentes de líderes na política no plano macro. Mesmo os homens não têm se mostrado tão capazes de liderar, no sentido de trazer união e engajar. Precisamos de pessoas sagazes, eficientes e com capacidade de persuasão. As mulheres são muito capazes e estiveram injustamente afastadas do poder. Apenas para exemplificar, elas lutaram na Revolução Francesa, e no momento da elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foram excluídas. Conquistaram o direito de voto apenas no século XX, com nova luta. Gradativamente, elas têm ocupado mais o espaço de poder. Durante a pandemia, tivemos grandes exemplos de líderes mundiais femininas, como Angela Merkel (Alemanha), Jacinda Ardern (Nova Zelândia), Erna Solberg (Noruega), Sanna Marin (Finlândia). E tivemos péssimos exemplos de liderança masculina, como é o caso do presidente Trump. Essa realidade revela que se tivermos mais mulheres no poder, temos grande chance de ter resultados diferenciados. A política contemporânea precisa se renovar e o aumento da participação feminina certamente trará um novo frescor.
IN- Como você analisa o atual cenário político brasileiro e cearense e como vislumbra os próximos meses?
RM- O cenário político brasileiro está dramático. Uma democracia não é um governo em que se joga qualquer jogo e se dialoga com os cidadãos, as instituições, a imprensa e a comunidade internacional, como se quer, muitas vezes, ignorando-os e desrespeitando-os. O Brasil está muito desrespeitado internacionalmente exatamente porque nosso presidente não está sabendo manter o rito e a compostura que o cargo requer, além de se revelar descompromissado com valores que fazem parte da agenda nacional, como a proteção ao meio ambiente, e o respeito à mídia e às instituições democráticas. Isso traz sérios danos para o país do ponto de vista político, mas, sobretudo, do ponto de vista econômico. Precisamos de estabilidade, precisamos de investimento exterior. Se o interesse é assegurar a liberdade econômica é preciso o mínimo de inteligência, para, pelo menos, falar a linguagem do mercado internacional. Há ainda vários outros problemas. Jamais seremos um país verdadeiramente forte, enquanto tivermos tantas pessoas vivendo na miséria. Segundo dados do IBGE, o grupo de pessoas em pobreza extrema, que inclui os que vivem com menos de 1,9 dólar por dia, ganhou cerca de 170 mil novos integrantes em 2019. É muito vida desconsiderada e mal tratada. É um desrespeito ao brasileiro. O cenário político cearense é bem melhor, porque nossos políticos agem de forma coordenada. Por exemplo, em todos os pronunciamentos que o Governador fez durante a pandemia ele mostrou estar alinhado com os demais Poderes, com a Prefeitura, com a Ciência e nós temos um quadro estável de secretários. É claro que ainda há muito a fazer, mas a situação política regional é incomparavelmente melhor que a nacional. Desejo que os cearenses aumentem sua projeção nacional. Quem sabe a situação do País também melhore. De todo modo, precisamos pensar em desenvolver lideranças públicas. É um bem social.